terça-feira, 4 de dezembro de 2012

A crítica da técnica e da modernidade em Heidegger e McLuhan, de Jorge Vasconcelos de Sá

Martin Heidegger distingue dois tipos de processos tecnológicos. A tecnologia anterior à Revolução Industrial, profundamente envolvida com a natureza, servindo-se dela e dependendo dela, no sentido de que da natureza só transfere força ou movimento. É um tipo de tecnologia que não agride a natureza; pelo contrário, envolve-a e coopera com ela. Em contraste, por exemplo uma central térmica, a energia acumulada em forma de carvão, é transformada em electricidade que, por sua vez pode ser armazenada e preparada para ser distribuída e usada segundo a vontade humana. A tecnologia moderna, regida por processos que se relacionam com a descoberta, transformação, acumulação e distribuição, constitui, assim, um modo de desocultamento substancialmente diferente daquele dominante nas tecnologias pré-industriais. A distinção entre os dois processos tecnológicos acarreta, como consequência, a diferenciação dos objectos produzidos por cada um deles. Enquanto que o processo técnico tradicional fabricava objectos únicos, a moderna tecnologia gera um mundo que Heidegger denomina de bestand, um mundo de objectos sem valor em si, exceptuando o uso que se lhes possa dar. Estes objectos produzidos sem individualidade real - no fundo, objectos degradados do humano - constituem a prova que o filósofo alemão exibe para justificar a sua concepção da essência da tecnologia, segundo a qual ela não pode ser concebida como um simples resultado da decisão humana individual ou colectiva, mas sim como algo de autónomo relativamente ao humano, a que chama Gestell, isto é, a pré-condição transcendental da tecnologia. Gestell significa então, a dimensão da tecnologia moderna que ordena ou rege o modo particular deste desocultamento. É justamente aqui que se torna particularmente evidente a ligação forte, dura, na visão heideggeriana, entre tecnologia e Ser: o desaparecimento do desocultamento em si acarreta, juntamente, o desaparecimento daquele no qual a verdade acontece, isto é, o próprio Ser. O processo de desocultamento da tecnologia é o movimento que leva a ‘fechar’ a natureza no mesmo e, simultaneamente, ao iludir a verdade das coisas, obrigar o Ser à sua não-revelação. A análise de Heidegger procura, assim, tornar visível o equívoco persistente na tradição filosófica ocidental em considerar a técnica como algo neutro e passível de controle. A proposição fundamental do pensamento teórico de McLuhuan é que os media sobredeterminam a palavra e o seu sentido. Esta é a tese por detrás da formulação, hoje proverbial, ‘The media is the message’, que se tornou um lugar comum interpretativo da cultura de massas. Encontramos, assim, na primeira fase da carreira intelectual de McLuhuan, uma nítida posição crítica em relação à tecnologia e à ciência que o século XX, pelo menos na primeira metade, veio a desenvolver. Tudo o que chamamos racionalidade e positivismo nada mais significa que nós esquecemos que esquecemos; tudo o que chamamos espírito e arte nada mais significa que lembramos que esquecemos. Na publicidade, McLuhan descobriu um idioma que poetas e escritores ligados ao movimento moderno haviam também reconhecido no mito, no conto de fadas e no sonho. Por outras palavras, McLuhan identificou aqui um tipo de pensamento de alusões directas, no qual as ideias e as imagens manifestam-se livres, implicando-se mutuamente, sem conexões formais, comparável à estrutura da arte vanguardista que tanto admirava. Estava encontrada, assim, a hipótese que McLuhan iria desenvolver na sua investigação sobre os media. Os meios de comunicação afectam a experiência e, através dela, toda a cultura, mais profundamente que as mensagens. A partir desta formulação, McLuhan articulou uma série de questões que constituem os aspectos centrais da análise que levou a cabo sobre os media, a saber: de que maneira os meios de comunicação influenciam as mensagens? Que aspectos do humano são afectados pelos meios de comunicação? Que relação existe entre os media e o homem? Por que razão determinadas épocas legitimam certos meios e não outros? As respostas encontradas a estas perguntas fizeram do autor um nome incontornável da cultura da segunda metade do século XX, articulando de modo original, comunicação, mediação, tecnologia e cultura. A crítica da técnica e da modernidade, em McLuhan, ao contrário, implica que o conteúdo da mensagem é irremediavelmente modelado pelo meio pelo qual a mensagem é difundida. Tal afirmação pode ser exemplificada na situação em que se olha a paisagem que se abre para além da janela. Neste instante, somos, na verdade, inconscientes do facto de que o vidro, apesar da transparência, confere particularidades ópticas a todas as cenas que gostamos de imaginar serem objecto de contemplação directa. O que fica de fundamental da prática crítica de McLuhan é, assim, a identificação da mediação como fundamento da cultura moderna. A articulação entre as práticas críticas de Heidegger e McLuhan pode ser enfatizada, em particular, nesta necessidade de libertar a mediação das formas tecnológicas tradicionais que, tal como as formas clássicas de análise crítica, já entraram em crise. A resposta a dar à cultura passa pelo reconhecimento, como disse, em algum lugar, G. Agamben, de que tudo se joga ‘em exibir uma medialidade, em tornar visível um meio como tal’, o que passa por ir além da instrumentalidade e da ilusão de controle.

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